O governo do Estado anunciou na última sexta-feira (19) a demolição definitiva da Cadeia Pública de Porto Alegre — antigo Presídio Central — como parte de um programa de investimentos no sistema penitenciário. Pelos planos do governo, a Cadeia será fechada e, no lugar, será construído um prédio novo, com 1.856 vagas. Além disso, planeja a construção da nova Penitenciária de Charqueadas, com 1.656 vagas, para absorção dos atuais detentos do antigo Central.
A demolição do Central foi prometida pela primeira vez em 1995, pelo então governador Antonio Britto (MDB), após a fuga de 45 presos da penitenciária. Posteriormente, em 2007, a governadora Yeda Crusius (PSDB) chegou a reviver a ideia, mas também não deu continuidade. Foi seu sucessor, Tarso Genro (PT), que chegou a iniciar a demolição, em 2014, mas concluiu o propósito apenas no Pavilhão C. Ao assumir o governo, José Ivo Sartori (MDB) não deu continuidade aos planos. Para tentar entender o impacto de uma eventual demolição do presídio, a reportagem conversou com a juíza Sonáli da Cruz Zluhan, titular da 1ª Vara de Execuções Criminais (VEC) do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que atua com presos encaminhados para a Cadeia Pública, e com o seu antecessor, Sidinei Brzuska, que trabalhou na VEC por 23 anos e hoje é titular 3ª Vara Criminal de Porto Alegre.
A juíza Sonáli diz que “obviamente é favorável à desativação do Central”, por se tratar de uma penitenciária que não tem condições adequadas de cumprir o seu papel.
“A gente sabe que é um presídio que já faliu como cumprimento de pena. Não tem estrutura nenhuma, chegou ao ponto de ter que desmanchar as celas, abrir as portas e deixar os presos circularem livremente, porque, senão, não conseguiria recolher tanta gente”, diz Sonáli.
A magistrada diz que não conhece o projeto de prisão que será construída no lugar da Cadeia Pública, pois não foi convidada para conversar sobre ele e tomou conhecimento apenas pela imprensa, mas ressalta que não basta apenas demolir o prédio, sendo necessário que as novas instalações a serem construídas pelo governo estejam adequadas à legislação para o cumprimento e execução de penas.
“É [preciso] uma mudança de paradigma, de cultura, porque a gente sabe que o Central, da maneira como está ali, há muitos anos os presos circulam livremente, a gente não consegue entrar nas galerias. É totalmente diferente daquilo que a gente espera para o cumprimento de uma pena”, diz.
Sonáli afirma que essa mudança passar por incluir, no projeto do novo presídio, a previsão de espaços e atividades para ressocialização, o que segundo a juíza é um problema mesmo nos presídios construídos recentemente.
“Claro que a situação degradante do presídio como ele está, construído 60 e tantos anos atrás, que só vai colocando pessoas ali sem melhorar a rede de esgoto, a rede elétrica, é óbvio que um cumprimento da pena é imensamente pior do que num presídio em que eles são divididos por cela e onde tu tenha uma rede de esgoto sanitário, uma rede elétrica satisfatória. Só o fato de sanar isso é bem melhor do que a maneira como eles estão cumprindo pena agora. Só que tu recolher a pessoa para ficar fechada na cela, ir para o pátio e mais nada, em termos de segurança pública, diminuição da violência e ressocialização, não dá muito efeito”, diz.
Na mesma linha, Brzuska afirma que é “evidente” que muitos problemas da Cadeia Pública são decorrência da estrutura física, que já está totalmente ultrapassada e sem condições de ser recuperada por meio reformas, sendo a destruição do prédio uma “consequência lógica”. Contudo, diz que nem todos os problemas são decorrentes do prédio. “A mudança cultural talvez seja mais importante do que a substituição de um prédio por outro. Se você repetir tudo que acontece no Central, certamente não vai mudar nada.”
Brzuska diz que é necessário mudar a cultura na nova cadeia, mas diz ser cético quanto à capacidade do Estado de construir uma penitenciária que inclua em seu projeto questões que são necessárias para evitar a repetição dos atuais problemas.
“O estado do Rio Grande do Sul, e isso não é uma coisa nova, foi perdendo os seus quadros técnicos ao longo dos anos e talvez não tenha a capacidade de projetar um presídio. Até hoje, que eu saiba, não tem um padrão de presídio. Nem de fechado, semiaberto, nem nada. O Estado acaba licitando e contratando a construção de novos presídios e quem acaba fazendo esses projetos são as empresas vencedoras desses contratos. E nem sempre esse padrão construtivo atende essas necessidades”, diz.
O juiz cita como exemplo a Penitenciária de Canoas (Pecan) que, segundo ele, apesar de ser um complexo prisional com mais vagas do que a Cadeia Pública, não incluiu em seu planejamento questões que são necessárias atualmente, como salas de audiência. “Agora, por exemplo, a gente faz audiências virtuais e é tudo no improviso”.
Ele destaca que também não há espaços culturais ou salas para a efetivação de políticas de justiça restaurativa. “O Estado projeta normalmente cela, pátio, cela, pátio, um modelo de construção que está ultrapassado no momento atual, tecnológico e tudo mais”, diz.
Como exemplo de mudança que seria necessária e que depende de um projeto diferente do que está sendo feito no Estado, Brzuska afirma que, nos presídios atuais, visitas compartilham o pátio com presos, quando o correto seria que isso fosse evitado. Se houvesse uma separação, diz, seria possível, por exemplo, passar a revistar apenas os presos, e não mais as visitas, facilitando o processo de controle sobre itens e produtos que ingressam nos presídios.
“Você pode mudar a cultura se fizer um projeto adequado à realidade local e atual do sistema. Não adianta só trocar o prédio, tem que trocar a cultura e isso, às vezes, exige mudança na planta”, afirma.
Um dos problemas históricos do antigo Presídio Central é o fato de ele há décadas ter áreas controladas por facções, em que detentos de grupos rivais não podem ter acesso sob o risco de terem sua integridade física ameaçada. “Com essas facções nas galerias, a gente tem que cuidar a movimentação dos presos até para eles não se encontrarem nos corredores de acesso para outros locais. No momento em que eles se deslocam para salas de aula, por exemplo, tem facções que não podem se encontrar, porque é problemático”, diz Sonáli.
Para Sonáli, a única forma de combater as facções é criando condições para a ressocialização real dos presos, em que alternativas apresentadas a eles sejam melhores do que permanecer como parte dos grupos criminosos.
“Não tem como tu botar em uma mesma galeria duas facções distintas em nenhum lugar. Na Modulada, de Charqueadas, é assim. Na PASC, mesmo sendo um por cela, é assim. Então, não adianta, porque a realidade da facção é uma realidade do Brasil, elas se formam na rua, não dentro do presídio. Quando tu recolhe, tu tem que respeitar, porque, senão, é assinar o atestado de morte do preso. A única maneira de interromper esse ciclo é com trabalho e com estudo. A gente tem um evento lá em Arroio dos Ratos em que está sendo oferecido um trabalho realmente bom e o preso que é de facção não pode participar, tem que sair. Aí tu consegue dar alguma perspectiva de mudança. Mas, se tu não oferece nada, porque ele vai sair da facção se ela oferece coisas que o Estado não supre?”, pontua a juíza.
Brzuska também aponta que a forma de evitar que facções tomem conta de um novo presídio é garantindo que o Estado vai suprir as necessidades básicas dos presos e garantir a segurança deles, evitando assim que isso vire “moeda de troca” dentro do presídio. “Mesmo nas estruturas novas, o Estado tem separado as galerias por facções. Isso é um indicativo de que ele não tem o controle, mesmo nos presídios novos”, diz.
O juiz afirma que algo muito importante seria pensar como controlar a entrada de produtos dentro dos presídios, mesmo se tratando de coisas lícitas no exterior, como comida. “Já na construção do presídio, você tem que pensar essas coisas. Porque tudo que ingressa na prisão, de fora, acaba com o tempo virando moeda de troca e é a lei do mais forte. Das coisas mais básicas, por exemplo, o Estado não pode permitir que entre sabão, que entre creme dental, que entre papel higiênico, porque aí passa todo mundo a ser tratado de forma mais igual”, diz. “Onde o Estado cumpre a parte dele, facção organizada não existe. Grupo organizado sempre vai existir, mas controle de um presídio, de cidades inteiras e bairros inteiros, isso termina, porque o preso fica sem contato. Ele acaba tendo que receber as coisas diretamente do Estado e isso enfraquece a facção”, complementa.
Apesar de ser uma reconhecida referência pelo trabalho que desenvolveu no Presídio Central ao longos dos anos, Brzuska, assim como Sonáli, não foi consultado sobre os planos para a construção de um novo presídio no local. “Seria importante que o Estado fosse menos egoísta e discutisse com a sociedade. Ouvisse desde os profissionais da saúde, para ver o que precisa, assistentes sociais, professores, pessoal da área da cultura, para fazer um presídio que atenda as necessidades e o sujeito não saia dali pior que entrou”, diz.
Fonte: Sul21.
Foto: Maia Rubim/Sul21
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